Porto
Alegre sofreu, mais uma vez, um reajuste nas tarifas do transporte coletivo
este ano. O reajuste, aprovado pelo governo municipal em 7,02%, aumentou a
tarifa em R$0,20. Há de se indagar, evidentemente, o porquê de haver aumento
regular das tarifas de um serviço de utilidade pública básico, que garante o
direito de ir e vir da população dentro da extensa mancha urbana de nossas
cidades. Indaga-se, também, a validade dos protestos por parte da população
articulada contra tal reajuste.
O
transporte público é um serviço de utilidade pública essencial porque é
necessário para o estabelecimento do direito de ir e vir garantido na
Constituição Federal Brasileira. Mais precisamente, o transporte público urbano
se faz ainda mais essencial devido às características funcionais, estruturais e
até mesmo morfológicas das cidades médias e grandes.
É
essencial devido a características funcionais das cidades porque é o transporte
público, em sua maioria, que faz o transporte da força de trabalho das suas
residências para seus postos de trabalho e faz, também, o transporte da massa
escolar de suas residências/trabalhos para suas respectivas
escolas/universidades.
O
transporte público se faz essencial, também, devido a características
estruturais das cidades porque transporta a grande maioria da força de trabalho
e dos estudantes. Tais movimentos, considerados movimentos pendulares de
rotina, são caracterizados como movimentos migratórios internos de massa,
que seria inviável se feito 100% em transporte privado devido à inviabilidade
espacial de acomodar tantos veículos em restritas vias.
Por fim, o transporte público se faz essencial
devido a características morfológicas das cidades porque as cidades estão, cada
vez mais, se expandindo em área. Ora, grande parte da população das cidades que
usufruem do serviço de transporte público moram em áreas periféricas. É
evidente, portanto, que outras modalidades de transporte, como bicicleta,
automóvel ou até mesmo à pé, são inviáveis por serem caras ou exaustivas por
causa das longas distâncias a serem percorridas devido à organização e à
morfologia das cidades.
O
serviço de transporte público é subdividido em serviço de transporte público coletivo
e serviço de transporte público seletivo. O primeiro diz respeito aos
serviços de transporte básicos e de massa, enquanto o segundo lida com serviços
de transporte restritos, mais bem equipados e é seletivo devido a seu preço -
sempre maior.
O
serviço de transporte público coletivo, que trataremos aqui, é público
evidentemente, por definição. Então, se ele é público, por que pagamos por ele?
Existem
diversas modalidades de serviços públicos. O serviço de transporte é aquele
gestionado por verbas diretas ao uso do serviço - como ocorre, também,
com os serviços de água e luz, por exemplo -, ou seja, você paga por este
serviço e o dinheiro arrecadado é utilizado para a manutenção do
serviço. Em tese, tais serviços não precisariam gerar lucros mas, como o
transporte público é massivamente utilizado, assim como serviços de água e luz,
inevitavelmente, se bem gestionados, gerarão lucros, que devem ser utilizados
para expansão estrutural e da qualidade dos serviços. À título de comparação,
outros serviços públicos, como educação, saúde e segurança pública, são pagos
por verbas indiretas ao uso de serviço, e estas, geralmente, saem dos
cofres do tesouro, por não possuírem fonte direta de financiamento. Não há uma
taxa ou imposto exclusivo que financie a educação, a saúde ou a segurança
pública, por exemplo.
É
certo, porém, que a economia é dinâmica, e o preço das coisas flutua - quase
sempre sobem - e, então, existem reajustes nas taxas dos serviços prestados às
comunidades. No caso do transporte público, os itens que mais pesam no cálculo
de reajustes são os salários dos funcionários e produtos de manutenção do
sistema, como conserto e aquisição de ônibus e o preço do combustível
utilizado. No caso de Porto Alegre, há um sindicalismo razoavelmente
estruturado em se tratando dos funcionários rodoviários, o que provoca uma
maior pressão política por reajustes salariais e melhores condições de serviço.
Em um sentido macroeconômico, porém, convém destacar que o aumento dos
combustíveis - e o aumento inflacionário geral - transcende a condição
municipal do controle dos preços, pois são fatores ligados à macro ordem
econômica.
Parece-nos,
então, legítimo o reajuste das passagens de ônibus em Porto Alegre. E o é, em
essência. Porém, na situação presente, há alguns problemas com relação à
situação dos reajustes.
Em
primeiro lugar, três das quatro empresas que prestam os serviços de transporte
público à comunidade porto-alegrense são privadas, em regime de concessão há
mais de 20 anos. Como tal regime de concessão não é o clássico - em que a
empresa ou grupo concessionário vencedor paga uma parcela em dinheiro ao
governo em troca da concessão do direito de explorar tal serviço -, há margem
para exploração excessiva do serviço em prol de maior lucratividade: tal feito
é conseguido ao desviar as taxas de lucros que deveriam servir para expansão do
sistema para servirem aos interesses privados dos donos das empresas e
consórcios. Não é feito processo licitatório de concessão no serviço em Porto
Alegre há mais de 20 anos.
Em
segundo lugar, o aumento das passagens, de acordo com estudos feitos por
entidades competentes na área, não acompanhou o aumento dos preços - a
inflação. De acordo com o estudo do Dieese, intitulado "A Manutenção do
Desincentivo ao Transporte Coletivo em Porto Alegre", enquanto a alta dos preços no período estudado foi de
281,31% na cidade, o preço do serviço de transporte público subiu 670,27%. Em
relação à alta do preço dos combustíveis, inclusive, a discrepância é, também,
expressiva: o Dieese afirmou que, no período considerado, o diesel subiu 5,8%,
enquanto que, nos cálculos das empresas, haveria um aumento de 15,03%.
Além de tudo isso que fora constatado, o transporte público
de Porto Alegre possui um grande problema: é precário. Apesar de arrecadar
milhões de reais por dia - mais de 1 milhão de pessoas utilizam o
transporte público municipal diariamente em Porto Alegre -, o serviço é
precário e mal gestionado.
O primeiro problema com relação ao serviço prestado em
Porto Alegre é o que chamarei de ineficiência gestionária: Porto Alegre
possui uma empresa encarregada de gestionar tecnicamente o trânsito e os
transportes dentro de seus limites - a EPTC. A empresa, nos últimos dois anos,
vem obtendo sucesso com as políticas e investimentos em gestão de trânsito em
Porto Alegre, com auxílio da engenharia de tráfego e de estudos de ordenação
territoriais, possuindo, agora, controle em tempo real e uma melhor
infraestrutura de trânsito para garantir maior fluidez nas ruas e avenidas da
cidade. Porém, parece que tal empresa esqueceu-se de gestionar o transporte
público em Porto Alegre. Funcionários de empresas de ônibus relatam que, para o
presidente da EPTC, Vanderlei Cappellari,
"tudo é difícil". E, realmente, é visivelmente nítida a falta de
gestão eficiente por parte do governo municipal para com o transporte coletivo
em Porto Alegre. A própria Companhia Carris Porto-Alegrense, a única pública das quatro
empresas que atuam no setor, vem apresentando quedas exponenciais de
qualidade e de balanços de recursos. A EPTC, inclusive, "vem
cobrando" da própria Carris que se torne sustentável pois, a princípio, a
empresa estaria gerando déficits insustentáveis (!).
O segundo problema com relação ao serviço de transporte
público coletivo de Porto Alegre é o que chamarei de ineficiência estrutural,
consequência da ineficiência gestionária: devido a uma falta de gestão e de
planejamento em políticas de transporte público, hoje temos uma completa
desconjuntura estrutural no serviço. Ônibus que não saem nos horários,
motoristas e cobradores mal treinados, veículos sujos e infestados de insetos
(baratas, inclusive!) e tudo isso, alegam as empresas, em prol de minimizar os
gastos (eu diria, em maximizar os lucros). Por exemplo: nos horários de pico,
algumas linhas de ônibus fazem o que seria algo como um trajeto circular - o
veículo inicia sua viagem no terminal que fica no ponto A, faz sua linha até o
ponto B e, depois, reinicia a linha, agora no sentido contrário, em direção ao
ponto A. O grande problema disso é que, justamente nos horários de pico, os
ônibus enfrentam uma série de obstáculos que os fazem quase sempre
atrasarem-se: congestionamentos, excesso de passageiros para embarque e
desembarque etc. O que, disto, ocorre? Evidentemente, se o ônibus está em linha
do ponto B para o ponto A e se atrasa para chegar no ponto A, então,
logicamente, que este sairá com atraso do ponto A! Tal estratégia é viável
somente fora dos horários de pico, quando os ônibus não estão tão suscetíveis aos
obstáculos. Em horários de pico a solução seria, então, deixar um veículo
disponível em ambos os pontos para cobrirem os horários de outro veículo em
caso de atraso. As empresas alegam, porém, que políticas como essas são
ineficientes financeiramente falando - o que me parece duvidoso, perante o
preço que pagamos de passagens ao longo dos anos.
Quanto à questão dos investimentos futuros prometidos pelo
governo municipal ao transporte coletivo de Porto Alegre, cito Mario Lahorgue,
Doutor em Geografia Humana e professor de Geografia da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, em que ele diz:
sempre pode parecer alguém para argumentar que as obras da Copa
também remodelarão o sistema de transporte coletivo da cidade, com a introdução
dos BRT (Bus Rapid Transit - será que o Fogaça consegue fazer uma música
rimando com isso?). A minha resposta é: isto não justifica anos de abandono do
sistema atual, porque quem anda de ônibus sente os problemas agora, e não no
futuro.
Após
explanarmos tudo isto, é de boa valia pensarmos a respeito da natureza dos
protestos estudantis ao aumento das passagens: ora, partindo do pressuposto de
que vivemos numa sociedade opressora, com um estado opressor, uma justiça
legitimadora da opressão e vítimas de uma polícia que efetivamente oprime, não
podemos senão julgar os protestos como válidos. Evidentemente que ninguém em sã
consciência faria apologia a protestos violentos, mas é compreensível o
teor de violência dos protestantes, afinal de contas, a história das sociedades
também se dá na dimensão da luta de classes - neste caso, empresários e
governos opressores contra a população oprimida. Tal reajuste aparenta ser criminoso,
afinal de contas, está sob investigação do TCE e do Ministério Público, e,
também, violento, pois reduz, injustamente, a renda daqueles que usufruem de um
serviço precário, mesmo custando tão caro.
Podemos
avaliar, então, o sistema de transporte público coletivo de Porto Alegre como
um sistema que possui, produz e reproduz, em sua essência, uma ineficiência
autogerada. Uma das soluções para conter o reajuste das passagens seria
cobrar subsídios, por parte das várias esferas de governo, para amortizar o
valor das tarifas, já que a amortização sai, hoje do próprio valor das tarifas
- os pagantes pagam pelos isentos e por aqueles que pagam meia passagem. Além
disso, utilizar de políticas e de investimentos, também, em políticas de
planejamento e gestão em transporte integrado, utilizado em várias cidades do
Brasil e do mundo. Acima de tudo, porém, devemos combater tal aumento, por este
ser injustificável.
A citação de Mario Lahorgue foi retirada do texto "Táxis nos corredores de ônibus: uma bobagem" que você encontra aqui